Uma conversa com o artista
A água é uma substância surpreendente. Existente em três estados físicos: sólido, líquido e gasoso, ferve a 100oC, congela a 0oC, conduz corrente elétrica, controla acidez e potencial redox, dissolve sais e o sólido flutua no seu estado líquido. Da água nasceu a vida. A utilização da água de modo irracional e abusivo levanta problemas crescentes de poluição e escassez, um tópico de grande preocupação (sustentabilidade). Elemento que sempre intrigou a humanidade, particularmente físicos e químicos, por conter associações moleculares relevantes (pontes de hidrogénio), tem sido, também, natural e desafiante tema para artistas.
Nessa qualidade, João Ribeiro não resistiu a este fascínio. Tudo começou com o envolvimento do artista no projeto Matriz|Caldas, 2012 (curadoria de Mário Caeiro) relacionado com as comemorações dos 500 anos das Caldas da Raínha, a água era assunto emergente e apetecível: as águas da Raínha, as águas termais, as águas que curam, as águas “milagrosas”, as águas “santas”...
Na sua génese, uma boa conversa em torno da água revelou curiosidade do artista em interrogar o químico. Falámos da água como solvente, as suas propriedades, a composição do corpo humano (cerca de 70% somos água). Interrogação após interrogação, encaminhou-nos para detalhes e compêndios “sábios”. Procurámos imagens da molécula em causa. De busca em busca, o olhar do artista aguçava-se. As estruturas várias abriam caminhos e lançavam pistas. As várias formas de representação, dando ênfase a aspetos diversos, tornavam-se decisivas no processo criativo. A representação de densidades eletrónicas, ângulos de ligações (hidrogénio e oxigénio), a ênfase no momento dipolar, ligações por pontes de hidrogénio promovendo associações entre moléculas, estabilização de iões negativos e positivos... enorme quantidade de informação para o assunto ganhar decisivas qualidades para ser artisticamente trabalhado. O artista estava convencido e fervilhavam as ideias... O químico encantado com mais uma possibilidade em potenciar a Arte pela Ciência e vice-versa. Maravilhosa associação entre duas pessoas em torno da associação de
dois átomos de hidrogénio a um átomo de oxigénio (H20). De associações de átomos, ideias e sinergias, os painéis aqui estão... Quadrados (mosaicos, quase peças de um puzzle) justapostos | encaixados desenvolvem uma intrincado emaranhado de conexões... entre os átomos, apresentados em duas dimensões que transportam ao 3D, nasceu uma rede quase neuronal que recria, um mundo (aquático) imaginado para além da água!
O projeto cresceu, cresceu e seguiu por avenidas exploratórias de desenhos, cores e “mensagens”. São tubos, ramificações, condutores de imagens que fluem... a “arquitetura” gráfica torna-se imparável preenchendo o espaço de exposição, tomando conta do espaço como uma cascata, uma maré ou um tsunami. Quase pensamos de que modo a proposta vai evoluir e se não tomará vida própria libertando-se do seu criador!
José J. G. Moura 2022/04
A Santidade da Água
Mais do que um cúmplice piscar de olho, convidando-nos a reparar nos trocadilhos entre o seu nome e os títulos das suas obras, ou das suas exposições, mais do que um obsessivo e autobiográfico impulso de representar e intitular o figurado esfíngico e edipiano, mais do que um circular e inevitável retorno aos ícones e símbolos da sua pintura, a presente instalação de João Ribeiro traduz uma insaciável sede de desenhar.
Sublinhadas por fundos a preto, branco ou cinzento e pelo peculiar amarelo de Nápoles, que cedem perante a pontual erupção de figuras e fundos de outras cores, a pulsão e a impulsiva necessidade do desenho estendem- se aqui por outros afluentes, esteiros e braços de rio, levando o nosso olhar a criar uma lezíria alagada, sobre a qual paira uma constelação de recorrentes símbolos e evocações.
A rigorosa e científica evocação da molécula da água, representada por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio, perde-se entre a esquecida memória da estrutura do monumental Atomium de Bruxelas e a omnipresente aproximação geométrica de quadrados, círculos e triângulos, que integram os diversos fragmentos de cada tela, passando antes a evocar a qualidade da água como solvente.
Assim, é nestes novos solutos onde se dissolve e preserva, simultaneamente, a memória de outros compostos, entrecruzando e prolongando pressupostos de anteriores séries que incorporam a semiótica da água, como Contos da Chuva Agreste ou Mapas Alquímicos, séries formalmente distintas mas conceptualmente convergentes no imaginário do artista.
É também através da alquimia das palavras que a lista de poetas deixa de ser apenas um mero e aparente catálogo onomástico, transformando-se numa galáxia de nomes que evocam palavras, frases e versos e traduzem a metamorfose de universos cuja operacionalidade da escrita e da poesia se entrecruza com a operacionalidade da pintura e do desenho.
Essa metamorfose poderá explicar, ainda, o aparecimento, nos círculos atómicos sem balões alquímicos ou qualquer nomenclatura, de um desconcertante corvo, disforme e intencionalmente desconforme, ostentando uma inquietante e desafiante morfologia erecta e quase antropomórfica, que não será apenas uma evocação de Poe mas também do Vicente de Torga e do próprio Vicente de João Ribeiro, transformando o nevermore, nevermore num interminável forever and ever da criação plástica, onde o artista se assume demiurgicamente como agente mediúnico entre as equívocas evocações do poeta, que projectam o texto poético, e as do pintor, que projectam a obra pictórica.
Deste modo, não será sem surpresa que a aparente monomania cromática da instalação poderá conter e sugerir, por paradoxal antítese, a matéria solar evocada, recriada e reinventada por Eugénio de Andrade, congregando na sua confluência as águas, as chuvas e as neves derretidas que escorrem dos seus versos, fazendo-as crescer, projectar-se e subir pela parede, mas fazendo-as também espraiarem-se a nossos pés.
Poderão ser estes Os Afluentes do Silêncio de que o poeta fala na sua sucinta e cintilante prosa, sugerindo as maternais águas e a matriz onde poderemos assistir à contínua transmutação da palavra em pintura e da pintura em novas palavras, num hierático e complexo labirinto que integra distintos fragmentos e os conjuga num intrigante palimpsesto.
Nesta instalação de João Ribeiro, a partilha artística poderá assumir- -se, assim, como uma iniciática, altruísta e prometaica actividade, que pretenderá afirmar uma cosmovisão construída a partir da sede de desenhar enquanto metáfora para o seu demiúrgico acto criador.
António Augusto Joel 2022/04
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