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Caminhos de Ferro em fotografias (África Sécs. XIX e XX)

 



Criando paisagens antropogénicas na África dos séculos XIX e XX: o caminho de ferro em fotografias


Na década de 1850, os governos portugueses tomaram os primeiros passos para dotar o país de caminhos de ferro, visando a modernização do país e sua aproximação em termos geográficos, tecnológicos e económicos ao centro da Europa. A partir de finais da década de 1870, os tecnocratas nacionais transferiram o investimento para as colónias africanas de Angola e Moçambique, onde o caminho de ferro devia não só promover a colonização dos territórios e a sua exploração económica, mas também cimentar a presença portuguesa em domínios que eram cobiçados por outras nações da Europa. Com ferrovias atravessando o sertão africano, Portugal afirmaria inequivocamente a sua soberania e apresentar-se-ia no concerto das nações como uma nação imperial de pleno direito. Foi com base nestes pressupostos que até à década de 1930 Portugal construiu diversas linhas-férreas totalizando uma extensão superior a 3,000 km: em Angola, as linhas de Luanda a Ambaca, Moçâmedes e Benguela; em Moçambique, as linhas de Lourenço Marques, Beira, Suazilândia, Transzambeziana, entre outras de alcance local. No final, o caminho de ferro contribuiu para a colonização e apropriação territorial de Angola e Moçambique sob soberania portuguesa, mas concorreu igualmente para uma profunda transformação na paisagem africana numa paisagem tecnológica, como as fotografias presentes nesta exposição demonstram.

Este domínio e alteração da paisagem africana — território e populações —, através de uma forte intervenção em termos de construção de infraestruturas (nesta exposição privilegia-se a rede ferroviária, mas são também relevantes a rodovia, as barragens, as cidades), renova-se hoje, no plano da investigação de história da tecnologia, pela sua importante contribuição para o debate em torno do Antropocénico. Assim, a conceitos mais clássicos e canónicos das narrativas historiográficas sobre as vias férreas como instrumentos de implementação de políticas coloniais e imperiais, adicionamos um novo estrato conceptual que nos permite explorar os grandes sistemas tecnológicos como atores de uma profunda mudança na hierarquia do relacionamento entre seres humanos e natureza. É hoje consensual que a ação humana sobre o planeta constitui uma das principais forças de alteração das diversas variáveis que moldam a Terra. A dimensão colonial da tecnologia permite-nos não apenas explorar estas interações, mas também interrogá-las a partir de uma grelha política e económica que se assume como tendo uma dupla dimensão que incorpora, simultaneamente, estratégias nacionais, europeias e globais.

A fotografia é uma excelente fonte para analisar estes processos. Como prática comum em Portugal desde a década de 1870, não é de estranhar a existência de fotografias retratando a implementação de caminhos de ferro na África Portuguesa. Surpreende, porém, o volume de imagens (de que a seleção nesta exposição é apenas uma pequeníssima amostra) e os ricos detalhes das mesmas, cobrindo diferentes fases da construção e operação ferroviárias e dos eventos celebrativos associados ao caminho de ferro. Estas fotografias eram tidas na altura em que foram tiradas como perfeitamente objetivas, retratando a realidade tal como ela é e não como o fotógrafo a viu, uma vez que eram elas próprias um produto da objetividade técnico-científica. Difeririam assim das pinturas ou dos desenhos, que resultavam da subjetividade do seu autor. Na verdade, o fotógrafo podia realçar um ou outro aspeto do que via, conforme o ângulo que escolhia ou a composição que montava, para passar uma mensagem específica. A própria legenda condiciona a visão do observador, chamando a sua atenção para um ou mais detalhes em particular. No caso das fotografias expostas, além de evidenciarem a evolução dos

caminhos de ferro coloniais, foram tiradas com o objetivo de demonstrar a vocação imperial de Portugal, como nação que trazia o “progresso” a África, “civilizando-a” e “educando” os seus habitantes pela lição do trabalho. No entanto, há que notar que também as interpretações contemporâneas são manifestações de subjetividade, que somam camadas adicionais de representações culturais às representações preexistentes. Assim, caberá ao observador interpretar as fotos como entender e debater as diferentes mensagens surgidas de cada interpretação.

Hugo Pereira, 2022



BIO Hugo Silveira Pereira

Investigador Auxiliar no CIUHCT – Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (NOVA School of Science and Technology, Universidade NOVA de Lisboa) e Honorary Visiting Fellow no Department of History da University of York). É editor da revista TST – Transportes, Servicios y Telecomunicaciones. É doutorado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É autor de vários livros e artigos sobre os caminhos de ferro portugueses no território continental e colonial. Os seus interesses académicos atuais incluem o uso da fotografia para registar atividades de ciência, tecnologia, engenharia e medicina e para criar representações e ideologias de progresso e modernidade. Publicações mais recentes incluem:
“Past, Present, and Future of Peripheral Mobilities in Portugal”, Transfers, 11:1 (2021), 108-137
“Appropriation, Integration, and Nation Building: Portuguese Railways in the Second Half of the Nineteenth and Early Years of the Twentieth Century”, Social Science History, 45:2 (2021), 391-416
“Harbinger of progress: Portuguese illustrated journal O Occidente in the late nineteenth century (1878-1899)”, Historia y Comunicación Social, 26:1 (2021), 165-180










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